SÃO PAULO – Em meio às notícias sobre a nova – e polêmica – vacina russa e as promissoras vacinas nos Estados Unidos, três candidatas em fase final de testes no Brasil também se destacam como possíveis soluções para combater o coronavírus: a vacina do laboratório AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, a da chinesa Sinovac e a da americana Pfizer em parceria com a BioNtech.
A principal justificativa para o Brasil sediar os testes está no estágio ainda avançado da pandemia no país, condição necessária para que os testes com milhares de pessoas mostrem se a vacina foi capaz de protegê-las em um ambiente no qual o vírus ainda circula. Mesmo que por um péssimo motivo, esse contexto pode fazer o Brasil passar na frente de outros países na produção nacional de uma vacina, caso uma das candidatas testadas aqui se mostre eficaz.
Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma Medida Provisória que viabiliza recursos para a produção e compra da vacina da Oxford. A proposta prevê um crédito orçamentário extraordinário de R$ 1,9 bilhão para que a Fiocruz – por meio do seu laboratório de Biomanguinhos – possa dar início à produção do imunobiológico nacionalmente.
Mas a pergunta que fica é: teremos, então, uma vacina contra a Covid-19 sendo produzida no Brasil em um futuro próximo?
O InfoMoney conversou com especialistas da área da saúde para entender como se dá o processo de produção nacional de uma vacina e chegar a uma resposta. Veja a seguir um resumo de como funciona cada etapa.
Processo longo
O InfoMoney já explicou o caminho percorrido pelas vacinas para que elas cheguem à população, focando nos processos de regulamentação e distribuição. Mas quais passos o país deve percorrer para se tornar autossuficiente na produção, depois que uma das vacinas em teste for aprovada?
Afinal, como explicaram as especialistas, a autossuficiência de uma nação em relação as vacinas é fundamental para que um país consiga suprir todas as demandas internas e, mais importante ainda, para que os laboratórios e cientistas nacionais tenham contato com novas tecnologias e processos.
Conforme explica Mayra Moura, Diretora da Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm), o processo para se tornar autossuficiente na produção das vacinas é longo e faseado. E entender como funcionam os acordos de transferência de tecnologia mencionados no infográfico é fundamental para compreender a complexidade da produção de uma vacina em solo nacional.
Primeiramente, acordos entre os laboratórios nacionais e os laboratórios que criaram a vacina são firmados, como vimos acontecer entre a Fiocruz e a AstraZeneca, por exemplo. “Depois, com a vacina devidamente registrada, os laboratórios nacionais recebem as primeiras doses e passam a ser responsáveis por monitorar o produto em todas as etapas”, diz Mayra.
Ao receber essas doses prontas, o laboratório realiza apenas a finalização do medicamento, que é uma parte mais simples da produção e consiste, basicamente, em: misturar algumas substâncias no ingrediente farmacêutico ativo para chegar à composição final da vacina; envasar; e embalar do medicamento.
Em seguida, acontece a transferência da tecnologia de produção da vacina de laboratórios internacionais para os nacionais. Essa importação de tecnologia deve ser vista como um conjunto de atividades que visa a introdução de novos procedimentos para que o medicamento seja produzido, o que, segundo Mayra, tem mais a ver com a implementação de metodologias do que com um maquinário específico.
Na sequência, são “importadas” as etapas mais complexas, de produção do próprio princípio ativo em si, o que envolve, por exemplo, a constituição do lote semente do microrganismo, a purificação do antígeno e sua fermentação.
A especialista explica que o processo de transferência de tecnologia tem sido essencial para que a incorporação das vacinas nas campanhas nacionais de vacinação ocorra de forma mais rápida.
“Esses acordos de transferência não são novos e são fundamentais não só para que o Brasil consiga suprir as demandas dos medicamentos e se torne autossuficiente como nação, mas para trazer à comunidade científica uma expertise muitas vezes restrita aos países desenvolvidos. Hoje, a maior parte das nossas vacinas é produzida nacionalmente, com total autossuficiência. São frutos que estamos colhendo de processos de transferência de tecnologia do passado”, explica Mayra.
Totalmente autossuficiente em cinco a dez anos
Normalmente, os países em desenvolvimento importam tecnologias de laboratórios de países desenvolvidos – exatamente o que está acontecendo com a vacina da Oxford no Brasil. Isso ocorre devido aos riscos financeiros e técnicos inerentes ao processo e ao baixo investimento em pesquisa de alguns desses países, como é o nosso caso.
Por isso, é cada vez mais comum a formação de parcerias entre empresas farmacêuticas e de biotecnologia e laboratórios nacionais.
O fato de algumas dessas empresas já estarem testando suas potenciais vacinas no Brasil facilita muito todo esse processo, porque já saberemos como a vacina vai se comportar na nossa população, o que pode trazer mais robustez e sentido para a produção nacional.
Entretanto, o processo é mais complexo do que parece e, em média, levam-se anos até que o país consiga se tornar realmente autossuficiente. “Isso demanda muito tempo e investimento de todas as partes, farmacêuticas, laboratórios e governo. A previsão completa desse ciclo de transferência tecnológica varia de cinco a dez anos”, explica Cristiana Toscano, representante da SBIm e pesquisadora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Embora o prazo estimado pela pesquisadora assuste um pouco e possa frustrar expectativas, vale dizer que os resultados das vacinas contra o novo coronavírus têm sido diferentes de tudo o que já se viu em termos de biomedicina. Devido ao estágio em que a pandemia se encontra, os laboratórios estão acelerando os procedimentos de maneira inédita, a fim de disponibilizar a vacina o mais rápido possível.
“Podemos ter uma expectativa positiva sobre o tempo. Mas vale ressaltar que todos os prazos estão condicionados às outras etapas, que precisam ser positivas sucessivamente”, explica Cristiana.
Ou seja, todas as previsões são pautadas a partir do sucesso ou não da chamada fase três, que é a última fase de testes clínicos, na qual milhares de pessoas são testadas. Passada a fase três, a vacina é aprovada e pode ser produzida em larga escala (entenda cada fase). Mas, nenhuma vacina do mundo passou desse estágio por enquanto – ao que tudo indica.
Apesar do anúncio de que a vacina russa seria a primeira do mundo a ser aprovada, ainda não se sabe se o medicamento passou por todas as fases de teste. A vice-primeira-ministra russa, Tatiana Golikova, chegou a dizer que a terceira fase de testes clínicos da vacina russa, com uma amostra de 1,6 mil pessoas, começaria neste mês. Não há, entretanto, uma previsão de quando ela seria concluída.
Mas a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que o medicamento é experimental e ainda está na fase 1.
Segundo Jarbas Barbosa da Silva Jr., diretor-assistente da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), escritório regional da entidade, a OMS não recebeu do governo russo informações técnicas sobre a vacina. “Uma vacina só pode ser aplicada em qualquer lugar do mundo depois que realizar os ensaios clínicos das fases um, dois e três e comprovar sua segurança e eficácia”, disse Barbosa.
Para Cristiana, então, se uma das vacinas testadas aqui conseguir demonstrar resultados positivos da fase três de testes até o fim deste ano, a melhor estimativa é que no primeiro trimestre de 2021 as doses comecem a ser distribuídas no Brasil. Ainda sim, esse prazo seria um recorde para a história humana.
Em que fase estão as vacinas testadas no Brasil?
Enquanto isso, laboratórios nacionais já estão caminhando para que, quando a vacina saia, o Brasil esteja preparado para recebê-las e comece a produção nacional o quanto antes.
Das quatro vacinas contra a Covid-19 testadas no país, três estão na fase três e a quarta está esperando a aprovação para entrar na última fase também.
A vacina da Oxford, em parceria com a AstraZeneza, a vacina da chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantan, também chamada de CoronaVac, e a vacina da americana Pfizer em parceria com a alemã BioNTech são as que estão na fase três. Já a vacina da chinesa Sinopharm, em parceria com o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), deve realizar a solicitação para iniciar os estudos de imunização na próxima semana.
Segundo o Ministério da Saúde, o acordo de transferência de tecnologia entre a Fiocruz e a vacina da Oxford e AstraZeneca prevê a disponibilização de 15 milhões de doses para o Brasil até dezembro, e a expectativa é que esse primeiro lote seja liberado em janeiro do ano que vem.
Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, afirmou que o acordo de transferência de tecnologia da chinesa Sinovac para o instituto prevê um envio de 30 milhões de doses da vacina contra a Covid-19. O diretor acredita que a vacina pode estar pronta para o registro ainda em outubro, com a disponibilização ocorrendo em janeiro de 2021.
“Todos os processos de controle de qualidade e validação já se iniciaram. A grande pergunta é se estará registrada e aprovada pelo estudo clínico e poderá ser utilizada. Sou muito otimista. Acho que um prazo razoável seria janeiro de 2021, dado o desempenho até o presente momento”, afirmou o diretor em audiência pública virtual.
Sobre a CoronaVac, Covas disse que o Estado de São Paulo também receberá 15 milhões de doses de vacina chinesa. “A vacina estará disponível aqui no Butantan já em outubro. Nesse mês, receberemos cinco milhões de doses. Em novembro, mais cinco milhões e, em dezembro, mais cinco milhões. Essas doses já estão sendo produzidas lá na China, então no fim deste ano teremos 15 milhões de doses disponíveis aqui”, declarou o diretor em entrevista à Globo News.
Seguindo a linha de otimismo do diretor, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que é possível que a população brasileira esteja totalmente vacinada contra o novo coronavírus até fevereiro de 2021. Segundo ele, caso necessário, o Instituto Butantan pode ajudar na produção de outras vacinas que se comprovarem seguras, além da chinesa, como a de Oxford. “Se tiver alguma dificuldade da Fiocruz [com a vacina da Oxford e AstraZeneca], poderemos ajudar na produção da de Oxford [com o Instituto Butantan]”, afirmou o governador.
A vacina desenvolvida pela americana Pfizer em parceria com a BioNtech começou a realizar sua etapa de testes clínicos no Brasil no começo de agosto. De acordo com Márjori Dulcine, diretora médica da Pfizer no Brasil, a expectativa é que em outubro, já com os resultados da fase três em mãos, a vacina possa ser apresentada às autoridades.
A meta da Pfizer – que já mobilizou suas cinco plantas fabris para se preparar para produção do medicamento – é produzir 100 milhões de doses ainda este ano e um adicional de 1,3 bilhão em 2021.
Já sobre a vacina chinesa da Sinopharm, falta ainda os responsáveis pelos ensaios clínicos enviarem um pedido à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para realizar os estudos de imunização no país. De acordo com Jorge Callado, diretor do Tecpar, o acordo da Sinopharm com o governo do Paraná também prevê a transferência de tecnologia para produção própria, caso a vacina seja aprovada para uso.
“Nesse estágio da parceria estamos focados na realização dos estudos clínicos em fase três e aguardando os resultados da testagem no Brasil. Vencida a etapa da fase três, iniciaremos um novo protocolo com a empresa Sinopharm, para tratarmos da questão da produção”, afirmou Callado, em entrevista à agência de notícias Reuters.
Ainda no Paraná, o governo de Ratinho Jr. (PSD) se reuniu nesta quarta-feira (12) com representantes de Moscou para fechar uma parceria para obter a vacina russa. Segundo informou o governo paranaense, o acordo é uma espécie de “protocolo de intenções” para que a vacina eventualmente seja testada no estado e, quem sabe, produzida também. Entretanto, tudo precisa ser referendado pela Anvisa, que também compartilha das dúvidas da OMS sobre o agente imunizador anunciado por Putin.
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