NOVA YORK – Pesquisa atrás de pesquisa aponta o United States Postal Service, os correios dos Estados Unidos, como a agência do governo federal favorita dos americanos.

Segundo uma pesquisa do instituto Gallup divulgada há um ano, 74% da população consideram o serviço excelente – número superior aos atribuídos à CIA e à NASA (ambas com 60%), ao FBI (57%) e ao Fed, banco central do país (48%).

Isso se traduz em confiança dos consumidores. Uma enquete da empresa de pesquisas Morning Consult divulgada em janeiro indicou o USPS como a marca mais confiável do país, à frente de empresas como Amazon e Google.

Dos quase 17.000 entrevistados, 42% afirmaram confiar “muito” nos correios. Até mesmo entre os millenials, a estatal só perde para o Google.

Mas Donald Trump pensa diferente.

Desde os primeiros dias de seu mandato, o presidente americano usa os correios como exemplo do que o governo tem de pior: uma estrutura inchada e mal administrada, que só perde dinheiro.

Na cerimônia de assinatura do pacote de ajuda emergencial em razão da pandemia – que incluiu o envio de cheques pelos correios -, Trump disse que a estatal “é uma piada”.

“Eles entregam pacotes para a Amazon e outras empresas de internet. Toda vez que eles entregam um pacote, perdem dinheiro. Os correios deveriam aumentar os preços [cobrados dessas empresas] em aproximadamente quatro vezes”, afirmou o presidente americano.

Nas últimas semanas, os ataques têm sido de outra natureza. Trump vem levantando suspeitas insistentes sobre a integridade votação pelos correios.

A expansão dos programas de voto à distância, essenciais durante a pandemia de coronavírus, pode resultar na “eleição mais fraudada da história”, afirmou o presidente numa entrevista coletiva há duas semanas.

Quase 180 milhões de americanos podem enviar seus votos pelos correios (as regras variam de estado para estado), e em eleições passadas não houve registro de grandes irregularidades.

Louis DeJoy, o novo presidente dos correios americanos, assumiu em maio e anunciou recentemente um programa de contenção de custos que envolve corte no pagamento de horas extras, retirada de caixas de correio e de máquinas de triagem de cartas.

Depois da incredulidade generalizada com o timing das medidas – e de protestos veementes de democratas e republicanos –, DeJoy voltou atrás “para evitar até mesmo a aparência de impacto na votação pelos correios”.

A pouco mais de dois meses da eleição de 3 de novembro, o presente e o futuro de uma das instituições mais queridas dos americanos ganhou as manchetes e virou mais um objeto da polarização extrema dos Estados Unidos.

Prejuízos bilionários

Em pelo uma de suas reclamações, Trump tem razão: como negócio, os correios americanos vão mal há muito tempo, e a crise do coronavírus só agravou a situação.

Entre janeiro e março (antes do início da pandemia, portanto), o USPS registrou prejuízo de US$ 4,5 bilhões, mais que o dobro das perdas do mesmo período do ano passado.

Desde 2007, são US$ 78 bilhões em tinta vermelha, segundo um relatório do Government Accountability Office. De acordo com o órgão, que supervisiona as contas governamentais, “o modelo de negócios atual do USPS não é sustentável”.

A explicação tem a ver em parte com a transição para as comunicações digitais.

O envio de cartas comuns – ou de “primeira classe” na nomenclatura da empresa – está diminuindo drasticamente. Elas ainda são muitas, é óbvio. Mas a tendência é clara: nos últimos dez anos, o volume caiu um terço.

Os americanos enviaram 16,5 bilhões de cartas e cartões postais no ano passado inteiro – e 6 bilhões de mensagens de texto por dia.

Das mais de 140 bilhões de correspondências trafegadas pelo USPS no ano passado, 53% foi material publicitário – promoções, cupons de desconto, marketing de massa.

Ou, como dizem os americanos, junk mail (literalmente “correspondência lixo”, o destino certo desse tipo de material).

O problema para os correios é que esse tipo de envio massivo custa cerca de um terço do valor de uma carta tradicional, aquela que leva selo, caso você ainda se lembre do que se trata.

As obrigações de serviço universal também custam caro. Embora o volume de cartas siga diminuindo, o número de endereços aumentou 9% na última década.

A redução no número de agências também não acompanha a queda nas visitas dos clientes.

Mas os números não sustentam a insinuação de Trump de que Jeff Bezos estaria enriquecendo à custa dos correios.

Mesmo com a concorrência das companhias privadas e com a presença cada vez maior de uma força logística da própria Amazon, a entrega de pacotes é um bom negócio para o USPS.

Segundo os resultados do último trimestre, divulgados no início de agosto, a receita com a entrega de encomendas aumentou 53,6% em relação ao mesmo período do ano passado, e o volume total de pacotes aumentou 49,9%.

A aceleração do comércio eletrônico causada pela pandemia não deve perder força, e pelo menos essa parte do negócio parece prosperar.

O contrato com a Amazon é sigiloso, mas os correios são impedidos por lei de cobrar preços abaixo do custo para não prejudicar as operadoras privadas.

Presume-se que a Amazon, como todo grande cliente, receba descontos, e uma agência independente aprova anualmente esses grandes contratos.

(O foco na Amazon não é casual. Bezos também é dono do Washington Post, jornal que, na opinião de Trump, publica “fake news” e faz críticas injustas a seu governo.)

Guerra política

DeJoy, doador de campanha de Trump e que nunca tinha trabalhado nos correios antes de assumir a estatal (apesar de ter experiência na área de logística), foi convocado a prestar esclarecimentos perante um comitê do Senado na manhã de ontem.

Ele afirmou estar “altamente confiante” de que não haverá atraso na entrega dos votos enviados pelos correios. “Vamos esquadrinhar todas as unidades nos dias que antecedem a eleição”, disse DeJoy.

DeJoy também garantiu que não discutiu os cortes com Trump e disse que as acusações de tentativa de interferência na eleição são “ultrajantes”.

Segundo ele, a retirada de caixas de correio e máquinas de triagem é algo que acontece regularmente. “Não houve mudança nenhuma nas políticas em relação às correspondências da eleição.”

Quanto aos planos de longo prazo, o diretor afirmou que a estatal vai precisar de ajuda para sobreviver à crise da Covid-19. O Senado deve votar no sábado um projeto de lei para injetar US$ 25 bilhões nos correios.

Ainda assim, será um mero band-aid. Além de lidar com a revolução digital e com as obrigações de atendimento universal, os correios foram obrigado a adiantar pagamentos ao fundo de pensão de seus funcionários.

A lei, aprovada no Congresso em 2006, é a principal explicação para a crise atual, segundo Steve Hutkins, professor de literatura da Universidade de Nova York e responsável pelo site Save The Post Office.

Hutkins, que diz “lutar contra a privatização há dez anos”, afirma que a situação poderia ser resolvida de maneira simples com nova legislação, mas as tentativas são barradas pelos republicanos.

“Para além da questão ideológica, há um enorme interesse do setor privado em assumir essa função.”

Oficialmente, o governo americano não expressou o desejo de privatizar os correios, como já fez o brasileiro. Existem experiências positivas em países como Alemanha e Holanda, que passaram o serviço para o setor privado e abriram o setor para a competição (em geral em certos nichos, como contas corporativas e material de marketing).

Mas, nos Estados Unidos, a resistência seria enorme. Assim como há alguns republicanos defensores ferrenhos da desestatização, existe uma parcela importante do Partido Democrata contrária à ideia.

Além disso, os sindicatos dos funcionários dos correios – que são quase 500.000 — são organizações poderosas.

As cartas podem ter saído de moda, mas a discussão sobre o futuro dos correios ainda vai durar um bom tempo.

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